domingo, 25 de novembro de 2007

Trecho pra refletir da peça "Gota d'água"

CREONTE
Esperem um pouco
Eu preciso de alguém pra refletir comigo se eu estou caduco, louco,
ou o mundo está ficando esquisito...
Fazem baderna, chiam, quebram trem, quebram estação, muito bem, bonito
E a gente inda tem que dizer amém
O trem atrasa o que? Nem meia hora
E o cara quebra tudo... Acha que é certo,
Jasão?...
JASÃO
Não discuto quebrar... Agora, quem às três da manhã tá de olho aberto,
se espreme pra chegar no emprego às sete, lá passa o dia todo, volta às onze
da noite pra acordar a canivete de novo às três, tinha que ser de bronze
pra fazer isso sempre, todo dia, levando na marmita arroz, feijão
e humilhação...
CREONTE
Ora, sociologia...
JASÃO
O que que é?...
CREONTE
Sociologia, Jasão...
JASÃO
Não...
CREONTE
Da pior, beira de cu, barata...
JASÃO
O cara já tá por aqui. Tá perto
de explodir, um trem que atrasa, ele mata,
quebra mesmo, é a gota d’água.
CREONTE
Tá certo,
Alma? (Silêncio) Muito bem. Na segunda guerra,só russo, morreram vinte milhões.
Americano, pra ganhar mais terra,foi dois séculos capando os culhõesde índio.
Japonês gritava “Viva o Imperador”, entrava no avião
pra matar e morrer de fronte altiva.
Na Inglaterra. uma pobre criatura de oito anos, há dois séculos atrás
já trabalhava na manufatura o dia inteiro, até não poder mais,
quatorze, quinze horas... Posso dar quantos exemplos você quiser. Foi assim
que os povos todos construíram tantos bens, indústria, estrada, progresso, enfim
Mas brasileiro não quer cooperar com nada, é anárquico, é negligente
E uma nação não pode prospera enquanto um povo fica impaciente
só porque uma merda de trem atrasa
JASÃO
Impaciente pra chegar até
seu trabalho...
CREONTE
Não, pra voltar pra casa
Quer outro exemplo, hein?...
JASÃO
Eu não sei onde é
que o senhor quer chegar...
CREONTE
Eu chego, eu sei...
Vou lhe dizer o que é que é o brasileiro
alma de marginal, fora-da-lei,
à beira-mar deitado, biscateiro,
malandro incurável, folgado paca
vê uma placa assim: “não cuspa no chão”,
BRASILEIRO PEGA E COSPE NA PLACA
Isso é que é brasileiro, seu Jasão. .
JASÃO
Não, ele não é isso, seu Creonte
O que tem aí de pedra e cimento,
estrada de asfalto, automóvel, ponte,
viaduto, prédio de apartamento, foi ele quem fez, ficando co’a sobra
E enquanto fazia, estava calado,
paciente. Agora, quando ele cobra
é porque já está mais do que esfolado
de tanto esperar o trem. Que não vem...
Brasileiro...

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