sexta-feira, 2 de novembro de 2007

BATAILLE

Claro está que o mundo é paródia pura, quer dizer, que toda coisa vista é paródia de outra, ou a mesma coisa mas com uma forma que decepciona.


Todos têm consciência de que a vida é paródica e uma interpretação lhe falta.

Por isso o chumbo é a paródia do ouro.

O ar é a paródia da água.

O cérebro é a paródia do equador.

O coito é a paródia do crime.

O ouro, a água, o equador ou o crime podem ser enunciados indiferentemente como o princípio das coisas.

Um sapato abandonado, um dente estragado, um nariz curto demais, o cozinheiro que cospe na comida dos patrões, estão para o amor como a bandeira está para a nacionalidade.

Um guarda-chuva, uma sexagenária, um seminarista, o cheiro de ovos podres, os olhos cegos de um juiz, são raízes por onde o amor se alimenta.

Um cão que devora um estômago de pato, uma mulher bêbada que vomita, um guarda-livros que soluça, um frasco de mostarda, representam a confusão que veicula o amor.


Um homem é provocado no meio de outros, ao saber por que não é nenhum dos outros.

Deitado no leito, ao pé de uma mulher que ele ama, esquece que não sabe a razão por que é ele mesmo, em vez do corpo em que toca.

Sofre, sem saber, com a escuridão da inteligência que o impede de gritar que ele mesmo é a mulher já esquecida da presença dele mas excitada no aperto dos seus braços.

O amor ou uma raiva de menino, a vaidade de uma velha da província, a pornografia clerical, o enorme diamante da cantora , fazem extraviar-se personagens esquecidas em casas cheias de pó.

Bem podem procurar-se avidamente umas às outras: só paródicas imagens conseguem lá ver, tão vazias como espelhos.


Esta mulher inerte e ausente, pendurada nos meus braços sem sonhar, não me é mais estranha do que a porta ou a janela por onde vejo e passo.

Quando adormeço, incapaz de amar aquilo que acontece, recupero a indiferença (que lhe permite deixar-me).

Nos meus braços é impossível que ela saiba quem encontra, pois fabrica, obstinada, um esquecimento total.

Os sistemas planetários a rodar no espaço, como discos cujo centro se desloca a toda velocidade para descrever um círculo infinitamente maior, afastam-se da posição que tinham para regressar a ela quando a rotação acaba.

O movimento é figura do amor, incapaz de estacionar neste ou naquele ser para passar, com rapidez, de um ser a outro.

E o esquecimento que vai condicioná-lo não é mais que subterfúgio da memória.

Fonte: BATAILLE, Georges. O Ânus Solar, Lisboa, Hiena Editora, 1985, pp. 19-25.


belíssimo texto....que não lí na íntegra...por enquanto...

Um comentário:

Athena disse...

Belo mesmo, mostra que o real é filtrado por cada ser, metamorfoseado numa avalanche de paródias. Não sei se o ideal, o ouro, é melhor que o chumbo. Quer dizer, há juízo de valor nessas paródias, como o veredicto (donde nasce a palavra verdade) de Platão ao expulsar os poetas da República ? Acho que não.