sábado, 3 de novembro de 2007

Das boas novas do filho do Homem (segundo Saramago)

Depois da última página, fecho "O evangelho segundo Jesus Cristo" sem acabar de lê-lo, o que todo bom livro provoca em leitores apaixonados e solitários.
Se fosse uma mera versão que se impõe como verdade, tal qual estes best-sellers que afirmam provar a realeza de Maria Madalena e seu envolvimento óbvio com Jesus, o lado político-marxista do filho de deus, a busca da 'verdade' histórica, não teria sequer razão de existir. Mas o evangelho segundo Saramago não só existe, é.
A mãe Maria é emudecida pelo patriarcado judaico, a ponto de apenas levantar discretamente o vestido para dar mais um filho a José. Sem direito as pré-palavras dessas horas, ainda que ao dormir ouse, inconsientemente, aproximar-se do corpo do marido.
"Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quandp ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com sua p´ropria túnica, e maria, entretanto, abria as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece seus deveres. (...) Deus não pode ouvir o som agônico, como um estetor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria." (pg.19)

Maria, José e, por herança, Jesus, são sujeitos assolados pela culpa do egoísmo (quase oposta da culpa cristã) já que foram coniventes com o genocídio das crianças pelos romanos, do qual escapou o bebê Jesus, por José tê-lo escondido e não ter avisado aos outros pais da aldeia que lhes abrigou. José é atormentado por um sonho, que após sua crucificação é passado para Jesus.
Jesus sente-se culpado e culpa aos pais por sua vida depender da morte de tantos outros e , aos treze anos, sai de casa e torna-se ajudante de um misterioso pastor, que o acompanha durante a vida.
Jesus encontra-se com Deus, que lhe afirma ser seu pai e lhe impõe sua missão de tornar o Deus cristão superior aos outros. A partir daí, o conflito de Jesus se intensifica na negação de ser filho de Deus e exercer este poder pelo sangue, e na falta de arbítrio a que Deus o subjuga. Jesus pede que deus lhe contabilize as mortes em seu nome, e fica estarrecido com o preço a ser pago pelo reinado cristão. Como diz o Diabo, com quem Jesus concorda, " é preciso ser deus para gostar de tanto sangue".

Maria Madalena e Jesus tem um amor incondicional e a cena deste primeiro amor, certamente, é das mais belas já escritas em língua portuguesa. A inteligência alimenta o amor erótico e Madalena e Jesus são um só, renovando a idéia bíblica da palavra conhecimento, que tem o sentido de saber sexual. Graças ao conhecimento, a condição de ser filho de Deus provoca em Maria um sentimento de piedade e comoção, jamais de orgulho, como quem se acostuma diariamente com a saudade e a despedida.

Jesus é desenhado com as tintas da inteligência e da rudeza, da dualidade inerente à dúvida, um homem duplo em essência. Sacrifica-se para negar o poder de Deus, por isso, pede a Pilatos a placa INRI ( Iesus Nazarenus Rex Iodeorum). Até porque, como afirma Pilatos, à Roma não incomoda um rei de um Deus no qual eles não creem. Sendo rei dos Judeus, a cruz se justifica, as pedradas também, pois o povo lhe confiou outro reino, o do céus. Antes da morte derradeira, pois não há ressurreição, Jesus pede perdão por ter um Pai tão ganancioso a ponto de não saber o que faz.
Neste sentido, a figura de Jesus nesse livro é muito mais grandiosa do que a da Bíblia. Um homem que nega o poder de Deus em prol da humanidade.

3 comentários:

caeiro disse...

o tema de tanta discórdia e polêmica desse livro pra mim (que sequer acredito na existência desse cristo tal qual conhecemos) é exatamente a única coisa que faz com que toda essa lenga lenga religiosa tenha um pouco de sentido: o fato do cara ser uma pessoas exatamente normal. que tem não só dúvidas, mas também traumas, tesão (não acredito em ninguém que não sinta tesão) e raiva. não dá pra acreditar num deus que não fode ( e não só a gente).

Unknown disse...

Você vai amá-lo, tenho certeza. Agora estou (finalmente) no Grande Sertão. Nossa !!! Mas depois escrevo

caeiro disse...

o grande sertão é a melhor coisa que já lí em minha vida.