continuação de nada
Aproximamos o nosso colchão das caixas de som, no canto esquerdo da sala, gostávamos de sentir a vibração sonora quando estávamos chapados. Ela reclamava da minha falta de interesse em melhorar de vida antes. Agora, aproveitava cada centímetro daquele cômodo pequeno, pago com alguma facilidade. Tivemos o azar de ter uma igreja construída num cubículo, próximo à nossa casa. E os cultos, ou seja lá como chamam aquilo, sempre coincidiam com a nossa entrega às substâncias vadias. De modo que, querendo ou não, compartilhávamos da ladainha e das músicas. E aquele som limitado, técnica e humanamente, nos incomodava profundamente. Mas incomodava muito mais à Duda, música aspirante, que não suportava aquela guitarra desafinada tão insistentemente tocada. Eu sabia, cá comigo, que cedo ou tarde, alguma a Duda aprontaria. Numa vez decidiu fumar um baseado na janela de casa, tive que ir correndo fechá-la. Noutra, muito mais engraçada, estávamos saindo de casa, não agüentávamos mais tanta falta de recursos musicais e, é claro, talento e semancol, ela entra no cubículo, cumprimenta a todos os presentes, vai até o rapaz da guitarra:
-posso?
Estendendo a mão para a guitarra, pedindo-a. O rapaz olha pra ela, sei lá o que passou na cabeça do cara, olha em volta, para o pastor, para a menina que, acredito, era apaixonado, e passa a guitarra para ela. Ela, com poucos toques nas cordas, afina o instrumento e, para se certificar da afinação, toca a introdução de “Given to Fly”, do Pearl Jam.
-pronto! Tá afinada...
Entrega a guitarra para o rapaz, que a pega meio constrangido. Duda, muito séria, sai da igreja, fazendo um sinal para que eu a seguisse, passa por todos, repete a cumprimenta, e já na saída, se desmancha de rir. Eu atônito ainda, mal podendo acreditar no que acabara de ver.
Um dos membros da igreja vem atrás de nós e repete o gasto jargão, supostamente sedutor, de todo crente: “deus tem um plano em sua vida”. Duda responde, muito calma e educada:
-tudo bem, mas que eu não reclamaria nem um pouco se ele tivesse um plano para vocês afinarem a porra da guitarra quando fossem tocá-la.
O cara arregala os olhos, dá as costas e entra na igreja cubículo novamente.
4 comentários:
caraaaalhoo
uauauaua...essa duda é uma heroína e tanto ;¬)
cara, será que algum crente tem coragem de reclamar da CPMF? Sei lá, me passou isso pela cabeça outro dia...tipo, o cara (teoricamente) dôa 10% do salário (teoricamente) para deus, e ai reclama do imposto de 0,38%...
isso sem lembrar do "dai a césar o que é de césar, e dai a deus o que é de deus"
desculpa ,mas este texto vai se r copiado e passado frente
tu és um filha da puta gênio, amo-te
Muuuito foda!
Parabéns Caeiro!
Ótima narrativa!
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